Declaração da Rede Ecumênica da Água, por ocasião do IX Fórum Alternativo Mundial

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Mensagem das águas do Brasil às águas do mundo

 

Por ocasião do IX Fórum Alternativo Mundial da Água, que acontece em Dakar, Senegal, de 21 a 26 de março de 2022, no qual pessoas provenientes de diversas partes do planeta água, organizações ambientais e outras da sociedade civil se encontram para refletir sobre a condição em que se encontra a água nesse planeta e como está o planeta em relação à água, manifestamos a nossa presença solidária e comprometida com todas as iniciativas que promovem o objetivo do IX FAME (Fórum Alternativo Mundial da Água): assegurar o direito à água como bem comum. Como Rede Ecumênica da Água-Brasil (REDA-Brasil), integramo-nos a esse objetivo, promovendo a água como bem comum, direito humano e dom divino.

A REDA-Brasil entende que a realização do IX FAME é uma convocação para um movimento mundial de cuidado pelas águas, fortalecendo uma convergência de diferentes culturas para a consciência da centralidade da água para todas as formas de vida. Sentimo-nos convocados para um pacto planetário pela vida, numa postura biocêntrica e ecocêntrica, que afirma o direito à vida extensivo a todos os ecossistemas e às biodiversidades, buscando uma nova sustentabilidade, que requer uma cultura regenerativa da teia da vida.

Nós, organizações ambientais e outras da sociedade civil, sentimo-nos convocados/as pelas águas para a realização do IX FAME. São as águas dos rios poluídos que clamam por recuperação de sua qualidade original; as águas das nascentes que secaram e querem ressurgir; as águas represadas que anseiam recuperar a liberdade; as águas dos córregos e rios que cruzam nossas cidades e querem tornar-se fonte de beleza, de lazer e de vida; as águas dos oceanos e dos rios voadores; as águas que são ofertadas como mercadoria nos comércios locais, internacionais e na bolsa de valores, que lutam para serem recuperadas em sua natureza de dom e de gratuidade.

Somos intelectuais, militantes, políticos/as, religiosos/as e espiritualistas, economicistas, jornalistas, ONGs / OSCs, sindicatos, mulheres, jovens, crianças e idosos/as… Somos corpos hídricos e consciências hídricas. E partilhamos com o FAME 2022 nossas convicções e experiências em prol da vida “plena em abundância”, que requer uma consciência de fraternidade e corresponsabilidade planetária. Juntos, queremos fortalecer os caminhos para uma conversão ambiental da humanidade, revendo suas relações com os recursos da natureza, especialmente a água. Queremos, assim, comprometer nossos povos e nossos governos na afirmação do “direito constitucional de acesso à água”, mas também um direito natural, humano e divino. Um direito de origem e não de conquista.

 

A situação das águas no Brasil

O Brasil é um país de dimensões continentais e de extraordinária riqueza hídrica, com as redes de águas doces dos seus rios, que formam dezenas de Bacias Hidrográficas, com destaque para as Bacias Amazônica, do São Francisco, do rio Tocantins e do Prata. Este país contém 12% da água doce de todo o planeta e 53% da água da América Latina. As costas brasileiras, de cerca de 8.500 km de extensão, são banhadas pelas águas azuis e verdes do Oceano Atlântico. Além das águas superficiais, o Brasil possui imensos aquíferos de águas subterrâneas, como o Guarani, no sul do Brasil, com 1,2 milhões de km²; e ao norte o recém revelado Aquífero Alter do Chão, considerado o maior aquífero do mundo em volume de água disponível, com 86,4 mil km³ de água, em uma área de 437,5 mil km², percorrendo vários estados do norte do Brasil.

Mas em que situação se encontram as águas do Brasil hoje? Assim como o que acontece em âmbito global, o Brasil sofre com mudanças climáticas que afetam os ecossistemas e ameaçam a diversidade de expressões da vida nos diferentes biomas. As causas de tais mudanças são mais humanas que naturais, como a poluição por produtos tóxicos, o desmatamento, a mineração, entre outras. A água é um dos elementos que mais sofre com essa situação, com o desaparecimento das nascentes, a diminuição do volume dos rios voadores, bem como a diminuição de 15% do volume de águas nos biomas brasileiros nos últimos 20 anos. Como consequência, o Brasil tem 70% dos seus rios poluídos. Acrescente-se a isso a má gestão dos recursos hídricos, o crescimento da sua mercantilização e a cultura do desperdício. Apesar de toda a abundância de água, o sistema sócio-econômico-político brasileiro não disponibiliza acesso à água de qualidade a toda a população, mesmo sendo um artigo da Constituição Brasileira.

Sabemos que não é apenas o Brasil que sofre graves problemas com relação à água. O problema é, infelizmente, planetário. E isso justifica a realização do FAME, convocando todos os povos, com suas culturas e seus credos, para promover a justiça das águas. Como REDA-Brasil, queremos contribuir com essa causa comum, apresentando propostas concretas que julgamos urgentes. Como afirmações centrais, enquanto REDA-Brasil, temos:

Afirmar os direitos da Terra como ser vivo, que precisa ser respeitado e valorizado em sua própria dignidade e finalidade: gerar e sustentar a vida.

Afirmar os direitos das Águas de serem reconhecidas como um bem vital comum, e não privado; de serem restituídas à natureza em sua pureza máxima; de ter uma gestão pública dos seus serviços às populações (modelo Danielle Mitterand).

Afirmar uma concepção tripartida da água: como um bem comum universal, que não pode ser submetido à lógica do mercado capitalista; direito humano e de todas as criaturas que dela necessitam para sobreviver; dom divino, o que a caracteriza como bem comum e direito universal, tendo sua raiz num Horizonte Transcendente onde tudo se origina e se sustenta;

Para garantir a concretização do que afirmamos, assumimos o compromisso de PROMOVER:

A Cidadania Universal Planetária, articulando todos os povos para uma cultura de fraternidade criatural, com o objetivo de chamar a atenção sobre o destino da humanidade, o que exige novos paradigmas na vivência do aqui e agora em conexão com a terra, a água, as montanhas, a biodiversidade, a criação como um todo.

Espaços abertos para aprofundar a reflexão, o debate de ideias democráticas, a formulação de propostas, a livre troca de experiências, e mobilizar a sociedade civil a opor-se à exploração capitalista do bem comum que é a água.

A gestão ambiental, social e cidadã do direito à água, sua preservação e sua distribuição entre os diversos usos. A participação dos cidadãos, comunidades e povos é um elemento crucial para a gestão democrática da água.

– Resistências à cultura capitalista que faz da água mercadoria, opondo-se ao sistema neoliberal e mercantilista, com suas iniciativas de financeirização dos corpos hídricos e dos ecossistemas, bem como à privatização de todo recurso natural.

Uma alternativa concreta ao Fórum Mundial da Água (WFME) organizado pelo Conselho Mundial da Água, desenvolvendo plataformas que viabilizem a concretização de ações cidadãs pela preservação dos recursos hídricos e sua gestão democrática, comunitária e realmente ecológica.

Realizar uma campanha internacional para conscientizar e exigir dos Estados a inclusão nas Constituições do direito à água e ao saneamento.

Tendo a REDA-Brasil o objetivo de articular forças que promovem a justiça das Águas, CONCLAMAMOS:

A sociedade civil e os movimentos sociais organizados, para:

– Afirmar a água como princípio de vida, direito de todos os seres vivos e bem comum do planeta Terra e da humanidade, opondo-se a todas as formas de depredação da vida no planeta, particularmente a vida das águas.

– Organizar-se como como grupos voluntários na defesa das águas potáveis do planeta, apoiando e fortalecendo os Comitês de Bacias Hidrográficas.

– Exigir que todos os programas de partidos e as exigências propostas a candidatos para todos os níveis da política representativa se comprometam com pautas que incluam o cuidado com a água e a defesa concreta dos rios e das bacias hidrográficas do país e da região em que vivem.

– Criar meios de articulação dos povos num grande Movimento de Cidadania pelas Águas, afirmando sua Centralidade para a Vida.

Os credos e tradições espirituais, para:

– Afirmar a dimensão espiritual da água, reconhecida em sua sacramentalidade, como criatura que tem natureza transcendental e nos vincula com o Transcendente.

– Promover o significado da criação nas diferentes cosmologias e teodiceias que expressam o caráter sagrado de todo criado, com uma postura de reverência e respeito para com as águas.

– Desenvolver uma espiritualidade da ecologia integral, a partir do olhar dos povos originários.

– Que as doutrinas, as liturgias e as práticas dos credos engajem as comunidades crentes em ações concretas por justiça socioambiental.

– Desenvolver em suas doutrinas e liturgias a relação Ser Superior/Deus e água.

As academias e entidades educacionais, para:

– Desenvolver processos educacionais que formem uma cultura socioambiental, envolvendo a sociedade na busca de soluções para a atual crise hídrica global.

– Rever os princípios e os valores que norteiam nossa presença humana na Terra e os conceitos de sustentabilidade, favorecendo a fraternidade criatural por uma ética de reverência e cuidado com a vida em todas as suas formas.

– Priorizar uma educação da sociedade em todos os níveis em relação à Água como fonte de vida para a Terra e para todos os seres vivos, numa perspectiva inter/ transdisciplinar que integre a água em seus diferentes significados.

– Que a UNESCO reconheça e recomende que a água seja colocada, na força de sua transversalidade, como tema nos currículos educacionais das crianças e jovens.

– Aprofundar cientificamente as bases e as razões para os processos educativos que gerem e sustentem novas relações com os recursos da natureza.

– Desenvolver uma educação ambiental que inclua a cultura das águas vinculada à promoção da cidadania.

– Possibilitar recursos humanos e tecnológicos para o conhecimento e preservação dos diferentes ecossistemas, sua biodiversidade e recursos naturais.

Educar para uma relação amorosa com as águas e com toda a criação, o que supõe revalorizar as culturas dos povos originários e reaprender com eles a se relacionar com a terra, as águas e a vida de modo comunitário e com respeito reverencial.

Os governos, para:

– A realização de acordos que regulem com sentido social e ecológico as práticas de manejo, conservação e uso comum da água.

– Desenvolver sistemas de distribuição e gestão comunitária das águas, garantindo sua acessibilidade a todas as pessoas.

– Desenvolver uma política das águas que enraíze os critérios técnicos e econômicos em princípios éticos e de justiça socioambiental.

– Formar um Fundo para apoiar os países mais fragilizados em recursos hídricos.

Tais propostas querem, enfim, incentivar o senso de urgência de ações concretas para a justiça das Águas. Urge desenvolver uma cidadania planetária que oriente de forma segura o destino da humanidade, com novos paradigmas na convivência fraterna de todos os seres criados, numa estreita conexão entre Terra, água, montanhas, vales…, com seus biomas e ecossistemas. A todo ser humano compete a responsabilidade no cuidado da terra e dos seus recursos, como a oikoumene – nossa casa comum. Que o FAME 2022 fortaleça as iniciativas nessa direção.

  

São signatárias deste documento as Organizações Fundadoras da REDA – Brasil:

Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil

Ágora dos Habitantes da Terra – Brasil

Núcleo Ecumênico e Inter-religioso – PUCPR

Iniciativa das Religiões Unidas

Coordenadora Ecumênica de Serviço 

Centro de Estudos e Ação Social

Instituto Oca do Sol

 

[imagem: Rio São Francisco, Alagoas]