Direitos Humanos e Direitos da Natureza: uma perspectiva biocêntrica

por Carlos Alberto de Moraes

* professor, pedagogo, membro do Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Betim-MG

 

O final do século passado e o início do século XXI impuseram à humanidade duas constatações inevitáveis. Primeira: somos parte integrante da Natureza. Não estamos fora da Natureza, como a modernidade apregoou. Somos Natureza. Formamos, com ela, uma totalidade, uma integralidade, uma completude. Por isso, deveríamos consolidar alianças e construir formas harmônicas de convivência com todos os seres vivos. Vista do espaço, a Terra não tem fronteiras, nem distinção de pessoas, nem divisões geopolíticas. É um grande organismo, vivo e pulsante, que respira, transforma-se, renova-se, sente.  Segunda constatação: a Natureza não é infinita, não é inesgotável. Os efeitos produzidos pelas megamineradoras, pela atividade petrolífera, pela contaminação dos recursos hídricos, pela destruição de florestas, pela agropecuária, pela monocultura, pelo uso indiscriminado de agrotóxicos e de alimentos geneticamente modificados, são devastadores. O surgimento e a consolidação das sociedades capitalistas estão envoltos na ideia de que a Natureza deve ser dominada, submetida e explorada ao máximo. Uma economia insensata e um estilo de vida baseados na visão ideológica da acumulação de bens nos conduzirão, inexoravelmente, ao colapso do planeta. A Terra não conseguirá absorver e resistir ao impacto voraz e aniquilador que ronda nosso futuro. Ferida pelas políticas neoextrativistas predatórias, a Natureza grita seus limites e reclama atenção e respeito.

Nesse contexto é que se localiza a concepção da Natureza como sujeito de direitos; que se constrói uma alternativa à narrativa desenvolvimentista; e que se questiona o antropocentrismo estruturante das sociedades ocidentais. Rejeita-se, portanto, o uso utilitarista da Natureza e advoga-se uma ética biocêntrica que consiga salvar o planeta, nossa Casa Comum, com a adoção e implementação de políticas ambientais que permitam a convivência soror fraternal, a justiça ecossocial e o desenvolvimento sustentável.

Assim, o caminho que temos pela frente é o de nos desvestirmos da pretensa autossuficiência civilizatória, do endeusamento que erigimos de nós mesmos enquanto seres soberanos e conquistadores, e de, humildemente, delinearmos o reencontro e a reconciliação com a Natureza, tentando atingir a completa e absoluta integração. Para alcançar tal objetivo, temos que aplainar as veredas do paradigma civilizatório ocidental e subvertê-lo revolucionariamente, mantendo-nos sensíveis à aprendizagem libertadora que as culturas ancestrais de diálogo fecundo e respeitoso com a Natureza podem nos trazer. Em outras palavras, deveríamos desmercantilizar a Natureza. A economia e os programas de desenvolvimento dos povos têm que considerar e se subordinar aos direitos à dignidade humana e à dignidade da Natureza. Sem negar as individualidades, o novo paradigma estabelece que, juntos, seres humanos e natureza formamos uma comunidade de vida e que o valor da vida se sobrepõe a qualquer sistema que, amparando-se na produção e no progresso, despreze os riscos iminentes de destruição da existência humana na face do planeta.

Urge, portanto, que a conscientização e as ações ocorram em várias esferas, na busca de soluções ambientais dignas e de sobrevivência do grande organismo que é Gaia, nossa mãe-Terra. Países que se enriqueceram à custa da exploração de colônias devem ser exemplo de políticas sustentáveis internas e devem se penitenciar e assumir a responsabilidade na restauração dos danos ecológicos que causaram devido à exploração desmedida. Países empobrecidos e despojados de suas riquezas naturais durante séculos devem voltar-se para escolhas políticas e econômicas que considerem a sustentabilidade como eixo de seus projetos de sociedade. Ativistas em direitos e movimentos sociais necessitam re-unir forças, entusiasmo e inteligência para questionar a organização sociopolítica ocidental antropocêntrica e consumista em que nos movemos e existimos. Diante do espectro da ultradireita mundial que assoma no horizonte neste início de milênio e diante do dissimulado neoliberalismo excludente e criador de desigualdades, um novo mundo possível não pode ser sonhado sem que desencadeemos esforços para que todos e todas tenham vida e a tenham em abundância. Somente uma nova organização social que considere que os direitos humanos estão intimamente entrelaçados aos direitos da Natureza conseguirá preservar o planeta, nossa Arca comum, e, consequentemente, toda a humanidade da total extinção.

É direito da Natureza ser preservada. É direito da Natureza ser restaurada quando sofrer qualquer processo de destruição. É direito da Natureza que haja controle do capital financeiro internacionalizado, a fim de que o Estado não seja manipulado, fazendo sangrar a terra, fazendo chorar os rios e oceanos, fazendo queimar flora e fauna, fazendo biomas inteiros definharem.

Na perspectiva biocêntrica, as religiões não desconsideram mais os direitos da Natureza e as ciências humanas não conseguem mais desvincular os seres sociopolíticos dos direitos da Natureza. É fundamental, pois, que atuemos com direitos humanos sem negligenciar os direitos da Natureza e sem negar as evidentes interconexões. Talvez, um novo olhar sobre a centralidade da vida em todas as suas dimensões seja um pequeno passo para uma grande mudança.

 

(foto de lifeforstock para Freepik Brasil)